domingo, 22 de março de 2009

Cães - Um caso de amor

Cães

De onde nasceu o melhor amigo do homem, quais as mudanças que eles sofreram nos anos que passaram e os malefícios dessas mudanças.

“De onde eles vieram”
“Fim da última Era Glacial, 15 mil anos atrás. O Homo sapiens começava uma vida nova. Depois de passar mais de 100 mil anos vagando por todo canto, em busca de animais para caçar e vegetais para catar, aprendeu a plantar. Era o início da agricultura. Agora os homens se juntavam em vilas. Eram as primeiras cidades do mundo. E, como toda cidade do mundo, elas eram rodeadas por lixo: restos de comida, frutas podres, ossos... Mas o que a gente via como dejeto era almoço grátis para vários bichos. Entre os ratos e baratas que se aproveitavam dos restos estavam os lobos. (...) Só que o lobo tende a fugir quando pessoas se aproximam. Um comportamento antissocial que não ajuda. Desse jeito o bicho não conseguia ficar muito tempo perto de uma vila para comer nossas sobras. Isso até a lógica da evolução entrar em cena”.
“Os poucos lobos que nasciam sem ter medo de gente, começaram a se alimentar melhor, já que não fugiam toda hora. Quem come melhor fica mais saudável, vive mais e faz mais sexo. Quem faz mais sexo deixa mais descendentes e passa seus genes para frente. De carona, vão as características que fizeram o animal ter mais sucesso do que os outros. No caso dos lobos comedores de lixo, a característica mais vital era uma só: não ter medo de gente”.
“Com o tempo (pouco tempo), já havia duas classes de lobos: os totalmente selvagens, e os que viviam perto de pessoas, e ficaram mais dependentes das aglomerações humanas para sobreviver. Além de ficarem mais amigáveis esses bichos foram ganhando uma aparência bem distinta da dos lobos. Estes últimos têm corpo forte e cérebro relativamente avantajado. São duas coisas essenciais para um predador que come búfalos e prepara estratégias de caça em grupo, mas são uma bagagem inútil para um bicho que se profissionalizou em comer restos. Corpo e cérebro grandes eram desvantagem para ele, já que exigem bastante energia para funcionar. Muita energia significa muita comida (como nós, cabeçudos, sabemos bem). E quem precisava de muito mais do que os outros para viver acabava morto de fome. Roer osso, afinal, é bem menos nutritivo que abocanhar um filé de bisão. Quem levou mais vantagem, então, foram os mais mirrados e de cérebro menor”.
“E a transformação desse novo bicho não parou por aí. Continuou firme, e agora se aproveitando de uma fraqueza nossa: adorar filhotes. (...) Os olhos grandes e os traços delicados dos recém-nascidos de outras espécies nos fazem identificar neles as características dos nossos bebês. Afinal, todos nós, mamíferos, temos um único tataravô. (...) Já que somos praticamente irmão de qualquer coisa que dê de mamar, gostamos naturalmente dos filhotes deles”.
“E eles de nós também. Se você pegar para criar um filhote de leão, de urso, ou de lobo, ele vai ser uma graça no início da vida; tão brincalhão e inofensivo quanto uma criança humana. Por isso mesmo muita gente cria filhotes de animais selvagens como bicho de estimação. O problema vai ser quando ele virar bicho grande: sempre vai parecer (e ser) algo ameaçador. Você não vai querer um leão adulto no seu apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando você chegar. Nem ele vai querer estar lá”.
“Mas aqueles lobos amigáveis queriam. Então aconteceu com eles uma coisa inédita no mundo animal. Os que tiveram mais sucesso - os mais bem alimentados, mais sexualmente ativos e com mais descendentes – foram os que continuaram com jeitão de filhote mesmo depois de adultos. Eram, afinal, os que mais agradavam os humanos. Nós enxotamos os lobos mais ferozes e paparicamos os mais dóceis, que passaram a receber comidinha na boca a vida inteira. Assim eles enganaram nossos instintos”.
“E supriram os deles: essa nova espécie se separou totalmente do Canis lupus (o lobo propriamente dito). Desaprendeu a caçar para comer e se especializou em ganhar a comida de seres humanos. Em vez de formar matilhas, preferiu virar membro das nossas famílias. Desenvolveu o latido para chamar a nossa atenção. E os instintos que sobraram foram os que parecem mais agradáveis para a gente. Por exemplo: sabe quando o cachorro vai lamber a cara do dono? É porque as lobas regurgitavam a comida para seus filhotes. Os cachorros não comem da boca de suas mães, mas mantiveram esse traço de comportamento selvagem-infantil com os humanos, já que para nós a coisa parece uma tentativa de beijo – não de comer vômito. Bom, na verdade sobraram mais instintos de lobo. Para caçar, por exemplo, o lobo combina várias habilidades inatas, que estão escritas em seus genes: procurar a presa, cerca-la mata-la e trazer a carne para o resto da matilha. Cada uma é um instinto independente. E todos precisam estar em sintonia para a caçada dar certo. Mas os cães não precisam caçar. (...) Então alguns dos genes que eles herdaram dos lobos acabaram desligados. É por isso que os cães adoram perseguir e intimidar outros animais, mas não têm o instinto de mata-los”.
“À primeira vista, essas crises de identidade podem parecer inúteis. Mas aprendemos a usá-las a nosso favor. Primeiro na caça: nada mais eficiente para o homem pré-histórico que sair para caçar com u7m bicho que sabe perseguir presas como um lobo , mas que, em vez de comê-las, só ‘traz a carne de volta para a matilha’ – no caso, para os homens”.
“Por volta de 9000 a.C. surgiria aquela que provavelmente é a maior revolução na história da economia mundial até hoje: a criação de gado – que permitiu o acesso a quantidades antes inimagináveis de comida. E os instintos tortos dos cachorros foram fundamentais nesse mundo novo. Os que tinham mais jeito para cercar presas foram usados para conduzir o rebanho. Os mais agressivos eram ensinados a proteger ovelhas e bois como se fossem sua própria matilha, defendendo-os inclusive de lobos”.
“A partir daí, essas habilidades viraram o grande critério de seleção entre os cães – os que mais se davam bem entre as pessoas eram os que trabalhavam melhor em suas áreas. Com mais comida e abrigo que os outros, esses eram os que passavam seus genes adiante com mais facilidade. Depois o homem acelerou o processo por conta própria, colocando os indivíduos mais eficientes (ou mais elegantes ou mais fofos) para se reproduzir entre si. Isso dividiu a espécie dos cães em tipos bem distintos, coisa que hoje chamamos de ‘raça’. Na Roma antiga, por exemplo, já havia raças de cães de guarda, de pastores, de cachorrinhos de colo... E o bicho deixava de ser mais um animal para se tornar um membro da humanidade. Mas a história dos cachorros como os conhecemos hoje ainda nem tinha começado”.


“Linha de montagem”
“A Revolução Industrial pode ter trazido grandes mudanças para a humanidade, mas revolucionou mesmo a vida dos cães domésticos. Antes de ser pai do cachorro o homem era seu patrão. ‘Até o começo do século 19, a maioria dos cachorros tinha de trabalhar para viver’, conta Lisa Peterson, porta-voz do American Kennel Club e especialista em história canina. Guiar ovelhas, guardar a casa puxar trenós: era a função que garantia a ração. Mesmo o9s caçadores especializados da aristocracia (hounds de raposas, lobos, veados, javalis, lontras, além de farejadores e perseguidores) precisavam mostrar serviço. E assim foi até que o êxodo rural, a migração em massa do campo para as cidades, desequilibrasse as coisas. ‘Na Inglaterra, principalmente, muitos cachorros ficaram “desempregados”’ conta Lisa. Mas isso não levou a uma extinção em massa ou a um boom de cães selvagens. O que aconteceu foi uma nova peneira: assim como na pré-história os lobos mais gentis entraram nas aldeias, agora eram os cachorros mais dóceis e adaptáveis que entravam nas primeiras metrópoles. Livre das obrigações da lida rural, os cães passaram a usufruir de mimos, guloseimas e passeios. Transformado em bibelô e símbolo de status, o cachorro deixou de ser avaliado pela sua função, e passou a ser pela aparência”.
“Os primeiros dog shows, mistos de olimpíadas e concursos de beleza, foram realizados na Inglaterra na década de 1830 – alguns especialistas insinuam que seu público vinha das lutas de cachorro, proibidas em 1835. Como os prêmios eram divididos por raça (nessa época as reconhecidas eram duas dúzias), havia um estímulo para a criação de novas raças, que abocanhassem novos prêmios. E logo essa demanda ultrapassou o mundinho das passarelas: ter um cachorro diferente em casa passou a ser símbolo de status. Partindo da matriz britânica, de 1873, pelo mundo inteiro surgiram kennel clubs promovendo o desenvolvimento de variedades regionais. A International Encyclopedia of Dogs (Enciclopédia Internacional dos Cães, ainda sem versão em português) traça esse big-bang: as cerca de 20 raças existentes em 1800 dobraram para 40 em 1873, e chegaram a 70 na 1ª Guerra Mundial. Hoje, segundo a Federação Cinológica Internacional, que estabelece os padrões das raças, há cerca de 400, dos mais diferentes tamanhos, cores e formas. Mas essa busca desenfreada pela variedade, e pela beleza, acabaria levando a vários problemas”

“Cruzamos animais da mesma família para aperfeiçoar e embelezar as raças. Mas isso resultou numa explosão de doenças genéticas”.

Metamorfoses Ambulantes:

1. Buldogue

· “O Buldogue só ficou gordo e enrugado porque nós achamos bonito; na versão original, ele era bem mais atlético”.
· “Cérebro pra quê? Deixamos nossos cachorros bocudos – e com uma cabecinha bem menor”.
· Efeitos colaterais das mutações: desgaste prematuro das articulações; buraco no coração: pode levar a morte; estreitamento das vias aéreas. 32,9% dos animais podem ter dificuldade para andar.
2. Bull Terrier

· “Pode parecer difícil de acreditar mas o Bull Terrier já teve um focinho normal. Seu narigão é obra do homem”.
· “Tantas mudanças enfraqueceram os cães – uma mera infecção de pele pode ser fatal para o Bull”.
· Efeitos colaterais das mutações: Infecção de pele potencialmente letal; perda de audição nos primeiros meses de vida; inflamação crônica dos rins. 25% dos indivíduos carregam falhas no DNA.

Um comentário:

De olho na ciência! disse...

Reportagem retirada da revista Super Interessante de março de 2009

Grupo: Felipe R Paula, Matheus Lopes e Lucas Vecchete