Células já especializadas da retina de roedor parecem retornar a fase ‘infantil’. Achado ajuda a compreender câncer e como organismo 'monta' a si mesmo
Para um tipo muito especial de neurônios, parece que a vida de fato começa aos 40. Ou pelo menos aos 30 dias de vida de um camundongo, o que, do ponto de vista do desenvolvimento celular, é praticamente a mesma coisa. Contrariando um dos dogmas da neurobiologia, um pesquisador brasileiro flagrou esses neurônios já “idosos” se dividindo adoidado, como se ainda fossem células juvenis. “Sim, é verdade, um neurônio com prolongamentos e sinapses [conexões com outros neurônios] está se dividindo”, resumiu o biólogo carioca Rodrigo Martins ao apresentar seus achados diante de uma platéia de colegas na XXII Reunião da Fesbe (Federação de Sociedades de Biologia Experimental). Em palestra no congresso científico, que terminou no sábado (25) em Águas de Lindóia (SP), Martins também mostrou que a síndrome de Peter Pan dos neurônios de meia-idade leva ao surgimento de um tumor muito agressivo nos camundongos.
Na verdade, portanto, o trabalho acaba desafiando dois dogmas. Até hoje, acreditava-se que a formação de novos neurônios num animal ou humano adulto era um processo que dependia de algumas células em estado ainda pouco especializado, as chamadas progenitoras neurais. Um neurônio que já tivesse estabelecido conexões com outras células nervosas teoricamente seria incapaz de tal feito por definição. Além disso, os tumores normalmente são considerados o fruto de células pouco especializadas, ou “indiferenciadas”, como se costuma dizer. Nesse caso, porém, é uma célula especializada que está fazendo o estrago. As descobertas podem tanto ajudar a entender de forma mais clara a biologia do câncer quanto, com alguma sorte, trazer pistas sobre como regenerar o próprio sistema nervoso. Martins, que atualmente faz seu pós-doutorado no Hospital de Pesquisa Pediátrica St. Jude, nos Estados Unidos, está investigando as raízes genéticas do retinoblastoma, um câncer de retina que afeta principalmente crianças. “Praticamente a única alternativa de tratamento hoje é retirar o olho de uma criança de meses de idade. Quando acontecem metástases [o espalhamento do câncer para outros órgãos], a chance de sobrevivência diminui drasticamente”, conta o pesquisador. Acontece que a retina, além de ser afetada por esse câncer terrível, é um dos melhores tecidos para o estudo da diferenciação celular, o processo que faz as células saírem de uma versão “genérica” para uma forma altamente especializada em determinada função. A retina é altamente organizada, possuindo vários tipos de célula em proporções diferentes e específicas, que vão de 80% para algumas células a meros 0,5% no caso de outras. Essa variedade toda depende, em grande medida, da capacidade das células de deixarem de se multiplicar no momento certo e assumirem funções definidas. Bagunças nesse ritmo preciso estão entre as receitas do câncer. É o que parece acontecer no retinoblastoma, que está relacionado à inativação de um gene, o Rb, assim batizado por causa desse tipo de câncer. A desativação do Rb desencadeia, por sua vez, alterações no funcionamento de vários outros genes. Foi estudando esse efeito dominó que o biólogo brasileiro e outro pós-doutorando do Hospital St. Jude, Itsuki Ajioka, deram de cara com os neurônios que não queriam crescer.
Adultos precoces
Em camundongos, Ajioka desativou uma das duas cópias do gene p107, ligado à via de funcionamento do Rb. Foi aí que a equipe de pesquisa notou o aumento de um subtipo celular específico na retina dos bichos. Eram os chamados neurônios horizontais -- células que normalmente cessam sua multiplicação cedo. Já no formato adulto, elas migram, estendem prolongamentos na horizontal (daí seu nome) e passam a fazer a ponte entre os detectores de luz do olho e outros neurônios da retina. Acontece que roedores com 30 dias de vida experimentavam um surto de divisão celular desses neurônios. E eles faziam isso mantendo seus prolongamentos e sinapses (conexões com outras células nervosas), duas características de neurônios que não se dividem mais. No fim das contas, formavam retinoblastomas muito agressivos. Quais são as implicações disso? “A primeira é você ter de repensar a idéia de que um tumor tem necessariamente de ser uma célula com determinada morfologia, ou com determinado comportamento biológico”, afirma Martins. Conforme o mecanismo exato da “volta à infância” neuronal for sendo elucidado, formas mais inteligentes de tratar o retinoblastoma também podem surgir. O pesquisador mostra muita cautela em relação à possibilidade mais mirabolante: e se um efeito parecido, mas controlado, pudesse ser induzido em neurônios adultos de pessoas com doenças degenerativas, de forma que elas reconstruíssem suas próprias células nervosas? “Com certeza é uma extrapolação que, enquanto hipótese, é algo honesto de ser feito. Permite, por exemplo que você repense o que acontece na neurogênese [formação de neurônios] no sistema nervoso adulto. O conceito de um progenitor, de células que podem se dividir gerando outras células, talvez precise ser repensado”, pondera o biólogo.
O repórter Reinaldo José Lopes viajou a convite da Fesbe.
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